Ultimamente tenho a sensação de que a minha filha está refém de dois conhecidos contos populares porque, estranhamente, todo o seu vocabulário parece resumir-se a esses dois títulos, e mal chega da escolinha, depois dos doces afagos do costume, regressa à previsível ladainha:
"Capuchinho Vermelho,
Branca de Neve,
Branca de Neve,
Capuchinho Vermelho."
Há relativamente pouco tempo começámos a contar de forma sistemática ao irmão, três anos mais velho, os contos populares de sempre: os de Perrault, Grimm e Andersen e ela fixou-se nestes dois. Não sou capaz de entender exactamente até onde chega a sua percepção da história, mas é óbvio o seu fascínio pela Branca de Neve e pelo Capuchinho Vermelho, pela rainha má e pelo lobo, pela floresta escura, pelo espelho mágico… Como é tão pequena tendo a adaptar a história. Tenho pudor em dizer “e então, a rainha mandou matar a Branca de Neve” e reformulo “e então a rainha mandou levar a Branca de Neve para muito longe, para o bosque”, o que na verdade fere a coerência da própria história, já que a Branca de Neve continua viva sem que a rainha resolva o seu problema, que consiste em ganhar novamente o estatuto de “mais bela”. Mas, voltando ao fascínio da minha filha que me mantém a mim também fascinada. Não desconheço que, desde que os contos populares ou contos de fadas/ contos da carochinha, como também são designados, começaram a ser alvo de estudo, surgiu uma corrente que insiste na ideia de lhes atribuir uma função pedagógica. Este tipo de contos seria um mostruário de relações interpessoais com utilidade para o desenvolvimento da inteligência emocional da criança, possibilitando-lhe, igualmente a observação de um modelo de percurso que permite ultrapassar todas as adversidades e vencer o poderoso eixo do mal. A ênfase é decisivamente colocada na função social dos contos.
Para mim, a questão faz muito mais sentido se a englobarmos no papel que assume a literatura na sociedade ou na própria definição do que é literatura, e que passa pela invenção de uma boa narrativa, pelo relato de uma boa história. Simplesmente. Quem não gosta de ler ou ouvir uma boa história? Sem necessidade de explicações, sem estar dependente de um objectivo moral ou didáctico.
Por que é que a literatura nos faz bem?
Por que é que a literatura faz bem às crianças?
É certo que as crianças são “esponjas”, que tem de haver bom senso no que se publica, critério na escolha dos pais, mas também não nos podemos esquecer que devemos assumir a nossa responsabilidade enquanto pais dando o exemplo, sem cair na tentação de pensar em educar apenas através dos livros (ou dos professores, ou dos outros). As crianças têm o direito de querer ficar maravilhadas com uma boa história, tal como os adultos. Simplesmente. E eu certamente vou contribuir para que isso aconteça… e lá terei de me sujeitar à ladainha de antes.
Para recordar e contar;
para ler e mostrar;
para contar e mostrar:
Contos de Perrault, Civilização Editora, 2007
30 cm. x 22,4 cm. 100 págs.
Textos: Gustavo Mazali
Ilustrações: Poly Bernatene
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